11 Abril 2023
"É aqui que reside toda a potência subversiva do cristianismo, infelizmente cristalizada numa liturgia que se tornou esclerose, cujo núcleo foi e continua sendo: eu e vocês não nos perderemos, no tempo, como lágrimas na chuva. E Artyom Datsishin dançará novamente", escreve Stefano Massini, escritor e dramaturgo italiano, publicado por La Repubblica, 09-04-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Um dia, perguntaram a Nureyev como ele se sentia com a ideia de que, mais cedo ou mais tarde, teria que parar de dançar.
Parece que inesperadamente ele se permitiu um amplo sorriso, antes de responder com absoluta certeza de que aquela despedida coincidiria com o próprio momento da despedida da vida, porque “só a morte é o fim da dança”.
Confesso que imediatamente pensei nessas palavras, quando no dia 18 de março de 2022 li a notícia de que Artyom Datsishin, primeiro bailarino da Ópera Nacional da Ucrânia, morreu em um hospital em Kiev. A história dele é emblemática, porque ele foi gravemente ferido durante um dos primeiros bombardeios russos na capital, no começo da matança que prontamente converteu os boletins sobre os mortos da Covid em boletins sobre vítimas civis e militares. Hospitalizado em estado crítico, Datsishin ficou na terapia intensiva por poucas semanas e, finalmente, usando as palavras de Nureyev, parou de dançar.
De forma que, na tabela diária das vítimas daquele dia de março, também aparece +1 russo e -1 ucraniano que em termos numéricos não se preocupa em denotar um artista extraordinário, capaz de emocionar os outros seres humanos, habitar sua fantasia e iluminar seus vazios com o raro milagre da harmonia.
Irrelevante.
Irrelevante porque ele ainda continua sendo 1 dos mais de 10.000 civis que pararam de dançar desde o início da última guerra, irrelevante porque a morte é um contador em cuja calculadora o inventor da penicilina conta tanto quanto o Dr. Mengele, e por outro lado, se um drone custa alguns milhões de dinheiro público, queremos que cumpra o seu trabalho de matar o máximo possível, não é? O caixão de uma estrela é um dano colateral, lamentável, mas necessário, porque Mussolini ensina que “é preciso alguns milhares de mortos para se sentar como vencedores à mesa da paz". E assim requiem para um dançarino, chega, acabou, fim da linha.
Até mesmo Jesus de Nazaré, exatamente como Artyom Datsisshin, era candidato ao “chega, acabou, fim da linha”. Ele também chegava ao precipício da morte com seus milagres, com palavras extraordinárias de uma pregação revolucionária, mas para efeitos de contabilidade 1 conta 1, e sua cruz era destinada a se mimetizar entre os milhares de anônimos crucificados todos os dias nas províncias romanas, condenado por incontáveis Pilatos em incontáveis Gólgotas.
Só para explicar melhor, parece que os dois os ladrões que morreram ao lado dele se chamassem Gestas e Dimas, mas eu não tinha ideia nenhuma de seus nomes: Gestas e Dimas, como o profeta da Galileia, terminaram de dançar naquele dia no Calvário, mas mergulharam no esquecimento, no vazio, dominados pela nevasca universal que Joyce usa em seu Dubliners como metáfora da virada humana.
Era de esperar que assim acontecesse, para o profeta filho de um carpinteiro que encantava as multidões e curava os aleijados, de forma que alguém pensou “vamos eliminá-lo e ao fim de alguns meses já ninguém se lembrará mais dele”, porque afinal o poder faz assim, usa a morte como uma borracha, a dobra como sinônimo de arquivamento, como bem demonstra aquele homem poderoso do Kremlin que no mesmo dia do assassinato de Anna Politkovskaya teria comentado “não sei quem é”.
Da mesma forma, certo dia no governo de Tibério, depois do enésimo cadáver baixado e preparado para o sono eterno, eis que o esquálido roteiro desmorona completamente e, dois mil anos depois, crentes e céticos ainda precisam lidar com o único que após a sua morte não deixou de dançar.
Entre igrejas e museus, há incontáveis pinturas e afrescos sobre a Ressurreição, mas entre todos gostaria de me deter sobre o políptico Averoldi, pintado quase cinco séculos atrás por Ticiano Vecellio: Jesus é representado com os braços abertos, como se estivesse tentando imitar a posição do crucifixo sem a cruz, e se apoia sobre a perna esquerda levantando a outra no ar, torcendo o tronco, enfim, parece realmente uma dança. E nessa dança há a redenção de tudo o que a morte tirou, subtraiu ou interrompeu aos homens, há a reviravolta de tudo, com a bomba TNT que faz explodir de vida a cidade dos mortos, o fósforo que queima porque reanima e o urânio empobrecido que dissolve definitivamente a contagem regressiva, aquela que nos transforma em trabalho em pele à la Blade Runner. É por isso que a Ressurreição de Ticiano é formidável, na medida em que nos fala de um Cristo dançante que é uma libertação, um ultraje, uma rebelião escandalosa, uma Sagração da Primavera de Stravinsky.
"A Ressurreição de Jesus Cristo", por Ticiano Vecellio. (Foto: Wikipedia)
No fundo é aqui que reside toda a potência subversiva do cristianismo, infelizmente cristalizada numa liturgia que se tornou esclerose, cujo núcleo foi e continua sendo: eu e vocês não nos perderemos, no tempo, como lágrimas na chuva. E Artyom Datsishin dançará novamente.
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Jesus de Nazaré. O filho do Pai que não parou de dançar após a morte. Artigo de Stefano Massini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU